Resultado de uma interação propositiva entre o Centro e Estudos, Pesquisa e Documentação e Cidades e Municípios Saudáveis – CEPEDOC (Who Collaboranting Centre) e a Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa – SGEP do Ministério da Saúde, este estudo foi viabilizado mediante a celebração de uma Carta-Acordo (BR/LOA/1300019.001) com a Organização Pan-Americana da Saúde da Organização Mundial da Saúde – OPS/OMS. 

O objetivo geral, deste estudo, de “Sistematizar informações, conhecimentos e modelos de intervenção necessários ao enfrentamento das iniquidades em saúde, em âmbito nacional, que atingem comunidades de terreiros, tendo como foco as práticas populares de cuidado e suas interfaces com o sistema de saúde”, não deixa dúvidas quanto aos interesses dos parceiros envolvidos em torno de três pontos que, como se pressupôs e se entende, estão intimamente associados: a) superar uma “deliberada” invisibilização de práticas tradicionais de cuidado à saúde como as praticadas pelas comunidades de Terreiros; b)  verificar denúncias de discriminação racial, intolerância religiosa e racismo institucional produtoras de iniquidades em saúde; e, c)  aprimorar o Sistema Único de Saúde oferecendo “ferramentas” para o trabalho em saúde em contextos de diversidade cultural.

 O desenvolvimento do estudo e os dados empíricos que o mesmo produziu permite afirmar que o objetivo geral foi alcançado. Contudo, como se sabe, não são os estudos que transformam a realidade, mas o que se faz ou se pretende fazer deles. O sucesso do estudo reside, portanto, nos elementos que ele pode fornecer para atores sociais e políticos comprometidos com o aprimoramento das políticas públicas de saúde e, complementarmente, para demais atores envolvidos com a proteção social e a produção de justiça.

 

O estudo partiu de uma abordagem empática do tema e dos atores vinculados a ele, mas sem abrir mão do rigor acadêmico no desenvolvimento das atividades previstas, desde o planejamento até a interpretação, passando pela coleta e análise dos dados. Tal empatia repercutiu positivamente nos campos de estudo, extraindo dos casos-sujeitos informações claras, amplas e, portanto, potentes, para a reflexão sobre o processo saúde-doença-cuidado. Cabe salientar que as interpretações realizadas foram validadas pelos casos-sujeitos que viram nelas expressões fidedignas de suas experiências como lideranças e como cuidadores.

 

O estudo partiu, também, de uma abordagem de “simetrização antropológica”, isto é, uma abordagem crítica a renitentes etnocentrismos, mobilizada a “devolver” as perguntas feitas de uma a outra das partes em interação e interessada em apreender uma mesma realidade a partir de diferentes perspectivas ou mediante o recurso a diferentes racionalidades. Trata-se de abordagem inserida no campo dos chamados estudos pós-coloniais, ou estudos sobre interculturalidade, como eles são mais conhecidos no campo da saúde.

 

O estudo, por fim, perseguiu uma proposta de “ecologia de saberes”, na qual todos os saberes são postos lado a lado e não em relações hierárquicas entre si, partindo do pressuposto de que cada saber está limitado por aquilo que cada saber não sabe e que, por isso, convida, aqueles dispostos para tanto, à realização de uma reunião sinérgica de saberes.

 

Foram realizados: três levantamentos bibliográficos sobre temáticas pertinentes ao objeto de estudo; nove estudos de caso de lideranças de comunidades de Terreiros; três estudos de caso estendidos também para a experiência de adeptos (membros/filhos de santo) dessas comunidades; três estudos de caso em Unidades de Saúde do Sistema Único de Saúde, relacionando-os aos estudos anteriores; teste de uma epidemiologia dos fatores protetores em três comunidades de terreiros; um Seminário Internacional denominado “Mães, Pais e saúde: a experiência do cuidado em comunidades de Terreiros”; e, a edição de textos extraídos do estudo no formato de um livro.

 

Um levantamento bibliográfico demonstrou que as aproximações e interações entre o Candomblé e o SUS devem se dar numa perspectiva de ecologia de saberes, pois caso contrário, há um risco de propostas de integração “colonizadoras”, nas quais são ignoradas particularidades sobretudo das partes que conseguem mobilizar menos recursos de poder.

 

Outro levantamento, o de experiências de gestão voltadas para contextos de diversidade, demonstrou que são incipientes essas experiências e, ao mesmo tempo, que há um interesse em se construírem aproximações, sobretudo quando se considera conceitualmente elementos presentes na cosmovisão africana que essas comunidades de terreiros apresentam que também estariam presentes na forma de princípios do SUS.

 

Os estudos de caso evidenciam que conhecimentos tradicionais de matriz afro-brasileira vêm há séculos cuidando da saúde de populações. Assim, são saberes constituídos em territórios existenciais reais, saberes que, justamente em razão de sua diferença, por sua “correspondência” a espaços sociais, culturais, estéticos, afetivos e cognitivos diferentes daqueles em que se desenvolvem os saberes e práticas da “nossa” medicina (oficial), podem talvez (e é essa nossa aposta) nos dizer algo a mais que eles ou diferente deles, talvez, inclusive, algo sobre eles, algo que nós, mergulhados neles e comprometidos com eles, não poderíamos elaborar, algo que pode ser “saudável”, pelo menos, considerar, já que são saberes sobre saúde.

 

Evidenciam, também, que comunidades de Terreiros, em suas práticas de atenção à saúde, acionam um modelo etiológico plural, relacionando diversas possibilidades de interpretação da doença e de sua causação. Esse pluralismo etiológico é o modo encontrado por esses espaços comunitários de cuidado para operacionalizar algo que a “nossa” medicina tem formulado para si mesma como um ideal prático: uma medicina centrada na pessoa e não na doença. A formulação desse ideal dentro da “nossa” medicina, entretanto, parece pressupor a existência de duas realidades separadas, a pessoa e a doença. O que os saberes sobre saúde e doença desenvolvidos e acionados nas comunidades de Terreiro nos ajudam a compreender é que não se trata apenas de mudar o foco, da doença para a pessoa, mas é preciso também reequacionar etiologicamente a própria “doença” como condição de uma medicina efetivamente centrada na pessoa.

 

Os estudos, por fim, apresentam um conjunto de práticas de cuidado que têm uma eficácia tanto simbólica quanto material. Tais cuidados seguem as lógicas da receptividade (acolhimento) e da singularidade e visam reequilibrar energeticamente a pessoa do ponto de vista físico e espiritual. Saberes tradicionais sobre plantas (folhas, raízes etc.) são combinados ao desenvolvimento de processos de autoconhecimento e autocuidado produtores de saúde e bem-estar.

 

O respeito à singularidade que retira do plano terapêutico uma dimensão de moralização dos modos de ser e viver, dimensão essa tão comum na prática de nossa medicina oficial, é uma prática em ato de valorização da diversidade e do exercício de autonomia diante dos processos por que passam as pessoas em suas vidas. O resultado desse processo terapêutico é o desenvolvimento de “fatores protetores da saúde”, portanto, isso expressa uma dimensão “salutogênica” da experiência dos Terreiros.

 

A salutogênese nos Terreiros foi testada a partir do “SOC”, um teste do “Senso de Coerência” desenvolvido por Aaron Antonovsky, que foi aplicado a três comunidades de Terreiros e cujos resultados confirmaram a hipótese relativa a isso. Um projeto (produto previsto por este estudo) de ampliação dessa abordagem foi construído visando incluir o estudo ampliado dos “ativos em saúde”, que são por sua vez, decorrentes da aplicação da teoria da salutogênese.

 

Três estudos realizados em Unidades Básicas de Saúde evidenciaram o “despreparo” do SUS para lidar com a questão da diversidade cultural e religiosa. Nesses estudos, a surpresa, ou a falta de sentido, percebida inicialmente pelos trabalhadores em relação ao porquê de se discutir a relação entre saúde e religião deu lugar a um entendimento que parafraseia uma antiga canção, qual seja, “como isso pode ter estado oculto, sendo tão óbvio”. 

 

Esses estudos confirmam as denúncias de práticas de discriminação e intolerância religiosa que são empreendidas de formas sutis e veladas. Como assinalou uma liderança religiosa, o SUS é laico, mas os profissionais de saúde não.

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PRODUÇÃO ACADÊMICA RELACIONADA AO PROJETO:

FERNANDEZ, Juan Carlos Aneiros. Determinantes culturais da saúde: uma abordagem para a promoção de equidade. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 23, n. 1, p. 167-179, 2014. https://www.scielo.br/j/sausoc/a/PxrHjYRS8ZgbcWs8drqgChr/

FERNANDEZ, Juan Carlos Aneiros, SILVA, Rafael Afonso da. O Método que se perfaz tateando. In: OLIVEIRA, Ellen Synthia Fernandes et al. (org.). Investigação qualitativa em saúde: conhecimento e aplicabilidade. Portugal: Ludomedia, 2016. v. 1, p. 63-78.

https://www.researchgate.net/publication/316669510_O_METODO_QUE_SE_PERFAZ_TATEANDO

SILVA, Rafael Afonso da; FERNANDEZ, Juan Carlos Aneiros; SACARDO, Daniele Pompei. Para uma “ecologia de saberes” em saúde: um convite dos terreiros ao diálogo. Interface (Botucatu), 2017, 21(63): 921-31. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/R4JfcPKdFKGZYJXP5j5GFHp/?format=pdf&lang=pt

FERNANDEZ, Juan Carlos Aneiros, SILVA, Rafael Afonso da; SACARDO, Daniele Pompei. Religião e saúde: para transformar ausências em presenças. Saúde e Sociedade, 2018, 27(4): 1058-1070. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/VWg43ZLDFKvDBJZKBL86WNr/?lang=pt&format=pdf

FERNANDEZ, Juan Carlos Aneiros; SILVA, Rafael Afonso da; SACARDO, Daniele Pompei. Ecology of knowledge and cognitive justice for health promotion: health in the Terreiro communities. Health Promotion International, 2019, 34(1): i65-i73. Disponível em: https://academic.oup.com//heapro/advance-article/doi/10.1093/heapro/day108/5258033?guestAccessKey=30f39dd3-084a-4fc4-8e86-0dd05647bc81

SILVA, Rafael Afonso da; FERNANDEZ, Juan Carlos Aneiros; SILVA, Mercês de Fátima dos Santos; SACARDO, Daniele Pompei. Para levar a sério o que os terreiros têm a nos dizer sobre saúde. Religião e Sociedade, 2020, 40(3): 145-168. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rs/a/x9LPxrtyPbdnVYDCGPBdPwL/?lang=pt&format=pdf

AKERMAN, Marco; MENDES, Rosilda; COSTA, Samira Lima; GUERRA, Henrique Leonardo; SILVA, Rafael Afonso da; SACARDO, Daniele Pompei; FERNANDEZ, Juan Carlos Aneiros. Religião como fator protetor da Saúde. Einstein (São Paulo), 2020, 18: 1-4. Disponível em: https://journal.einstein.br/pt-br/article/religiao-como-fator-protetor-para-saude/

AKERMAN, Marco; MENDES, Rosilda; COSTA, Samira Lima; GUERRA, Henrique Leonardo; SILVA, Rafael Afonso da; SACARDO, Daniele Pompei; FERNANDEZ, Juan Carlos Aneiros. Resposta para: Religião e saúde: nem sempre é bom. Einstein (São Paulo), 2020. 18: 1-2. Disponível em: https://journal.einstein.br/pt-br/article/resposta-para-religiao-e-saude-nem-sempre-e-bom/

FERNANDEZ, Juan Carlos Aneiros; SILVA, Rafael Afonso da; SILVA, Mercês de Fátima dos Santos; SACARDO, Daniele Pompei. Produção de saúde em encruzilhadas epistemológicas: comunidades de matriz africana e unidades de atenção primária. Campinas, SP:  Pontes Editores, 2022.

SUMÁRIO

BÊNÇÃO-PREFÁCIO…………………………………………………………………………….7

Tat’etu Alassinanguê

NOTA EXPLICATIVA……………………………………………………………………………..9

Juan Carlos Aneiros Fernandez

Rafael Afonso da Silva

INTRODUÇÃO………………………………………………………………………………………11

O PROCESSO DE PESQUISA: DESCRIÇÃO E NOTAS 

METODOLÓGICAS……………………………………………………………………………..11

Juan Carlos Aneiros Fernandez

Rafael Afonso da Silva

Parte 1:  Estudos de caso em comunidades de terreiro 

Cuidado e produção de saúde

“A VIDA NÃO TEM UMA REGRA QUE VAI SER SEMPRE 1+1=2” 

Estudo de caso com Tata Ngunz’tala – Nzo Jimona Dia Nzambi….33

Juan Carlos Aneiros Fernandez

“TUDO É EXPERIÊNCIA”

Estudo de Caso com Iyá Vera Soares de Oyá Ladjá – Centro 

Memorial de Matriz Africana 13 de Agosto…………………………………….71

Rafael Afonso da Silva

“ESSE MODO DE AMOR”

Estudo de Caso com Mam’etu Odé Belogesi – Nzo Dia Ngunz 

Mutakalambo YIamatamba………………………………………………………………..121

Juan Carlos Aneiros Fernandez

“HOJE SOU MÉDICA DE ALMAS”

Estudo de caso com Iyá Lúcia Omidewá – Ilé Asé Omidewá……….149

Mercês de Fátima dos Santos Silva

“A PESSOA TEM A LIBERDADE DE SER QUEM ELA É”

Estudo de caso com Baba Tonican Mário de Ogum – Ilê Axé Ifé 

Ogum Oraminan…………………………………………………………………………………..183

Juan Carlos Aneiros Fernandez

“A RIQUEZA DO CANDOMBLÉ É EXATAMENTE ISSO: 

É ESSA DIVERSIDADE”

Estudo de Caso com Tat’etu Alassinanguê – Nzo Moyo Lembá 

Dilê ni Ndandalunda…………………………………………………………………………..211

Rafael Afonso da Silva

Parte 2: Estudos de caso em unidades de atenção primária 

SUS e religião

SUS E RELIGIÃO – Estudo na Unidade A………………………………………..251

Rafael Afonso da Silva

Juan Carlos Aneiros Fernandez 

SUS E RELIGIÃO – Estudo na Unidade B………………………………………..309

Daniele Pompei Sacardo

SUS E RELIGIÃO – Estudo na Unidade C…………………………………………347

mercês de Fátima dos Santos Silva

SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES…………………………………………….369

Projeto: PRÁTICAS POPULARES DE CUIDADO À SAÚDE EM COMUNIDADES DE TERREIROS​

CEPEDOC – Centro de Estudos, Pesquisa e Documentação em Cidades Saudáveis.

Faculdade de Saúde Pública da USP
Av. Dr. Arnaldo, 715, subsolo sala 25
Cep: 01246-904 - São Paulo SP (Metrô Clinicas)
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E-mail: cepedoc.cidadessaudaveis@gmail.com

 


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